Açúcar

Rafael se lembrava bem daquele dia em que chegara a casa após a missa de Quarta – Feira de Cinzas sem decidir qual tipo de jejum iria fazer este ano, era de costume familiar se fazer um jejum durante o período da quaresma, mas este ano era diferente, era o primeiro ano que Rafael estava em sua própria casa. Era um sonho de longos anos, morar sozinho. Agora sim, ele bem sabia o gosto da realização pessoal, aos seus poucos mais de 25 anos recém celebrados, solteiro, bom emprego na área que sempre quisera, funcionário público, analista de sistema de um Tribunal, comprara recentemente um bom apartamento, bem localizado e amplo.

Pois bem, Rafael se lembrava bem daquela Quarta – Feira de Cinzas de noite, quando chegara em casa, ou melhor no apê, jogara seu sapato sobre o tapete da sala e ligara o computador ainda antes de ligar a luz. Bem se lembrava que vira a fronte da sua testa ainda marcada pelas cinzas refletida no monitor do computador. Estava com fome. O padre havia prolongado a homilia, mas de certa forma Rafael não tinha se incomodado, refletiu sobre o auto controle, sobre o seu domínio e conhecimento sobre si mesmo e estava decidido a passar quarenta dias de desafio. Enquanto o computador ligava foi até a cozinha e pegou na geladeira o leite e no armário o achocolatado. Bateu tudo do liquidificador e antes de beber disse para si mesmo, cara, como eu gosto de leite. Nesta hora se decidiu, afastou dele o copo de leite espumante e atrativo, fechou o achocolatado e guardou-o no armário. Foi até a pia despejar o copo de leite batido, tentou duas vezes vacilando. Era um pecado jogar comida fora, ainda mais eu um copo de leite batido, mas não havia outra forma. Rafael decidira fazer penitencia de leite com achocolatado.

Agora estava ali, sem saber bem o que fazer. Há pouco tempo atrás, Rafael chegou do trabalho, ligou o computador como sempre, tomou um copo de água e ficou navegando na rede até perder a noção total do tempo, ou para ser mais exato, até a fome apertar. Foi então que decidiu fazer uma boquinha na cozinha, abriu a geladeira pegou presunto e o queijo mussarela, abriu o armário em busca de achar alguma coisa qualquer que não saberia definir se fosse perguntado. Avistou o pote de acholatado, tão solitário, quase o chamava, disse para si; não.  Mudou a direção do olhar pegou o pote de café, um pote comum, nada de mais. Colocou a água para ferver foi pegar o açúcar. Quando, abriu o pote teve uma surpresa. Desafio o leitor a tentar descobrir o que tinha no pote de açúcar, e acredito que não conseguirá acertar, não que eu o subestime, mas que realmente a resposta é um tanto quanto inusitada, pois bem, chega de mistério. Rafael se espantou, olhou fixamente para o interior do pote tentando compreender como se dera tal fato. Não havia o que fazer. O que Rafael constatara no fundo pote não era nem mais nem menos do que o mais absoluto nada, o solitário vazio. Não havia nada no pote de açúcar, não havia açúcar.

A primeira reação lógica de Rafael foi procurar um pacote de açúcar na dispensa, tentou e não encontrou êxito. Olhou para o relógio e percebeu que já eram dez da noite, não havia mercado próximo aberto, pensou em ir ao 24 horas, mas ficava a meia hora dali, teria mesmo que comer sem café, ou sem suco, afinal não daria para tomar nada sem açúcar e Rafael detestava adoçante. Pensou então em adoçar com mel, foi até a cristaleira antiga, praticamente vazia, que comprara numa feira de antiguidade e que conservava na sala de estar do seu apartamento como uma espécie de requinte próprio para afirmar para si mesmo que gostava de cultura e se importava com a decoração, o que claramente era contradito pela conservação dos cômodos e pela disposição dos moveis. Na cristaleira velha procurou inutilmente pelo vidro de mel que comprara do seu compadre do interior de minas, Gilmar era o nome dele, mas isso não tem relevância. Na verdade, o vidro de mel nunca estivera na cristaleira, Rafael tinha esquecido na casa de sua mãe e tinha planos de colocar na cristaleira ao lado de vidros de licores de vários sabores, e de uma garrafa de whisky doze anos. Mesmo que não bebesse, seria importante ter como aperitivo para as visitas.

Olhando para dentro da cristaleira antiga e quase vazia, Rafael pode ver o seu reflexo através do vidro empoeirado e pode se sentir um pouco como a cristaleira, como o pote de açúcar, que por algum motivo ainda segurava em suas mãos. Se sentira vazio. Se estivesse ainda na casa de sua mãe, quem sabe agora teria um pouco de açúcar para adoçar o café… Café é verdade. A água estava fervendo! Correu para a cozinha e desligou o fogo, não antes de presenciar o pouco de água que sobrara na chaleira em ebulição frenética. Não gostava de cozinhar, nem de colocar água para ferver, gostava mesmo era de leite batido no liquidificador com bastante chocolate, gelado!

Gostaria que a sua mãe estivesse agora ali, ou que a empregada estivesse ali, ou que o açúcar estivesse ali, no pote que por algum motivo insistia em ficar em suas mãos.  Eram um pouco mais de dez da noite, e se fosse fazer uma visita a sua família, não era tão longe assim, poderia fazer uma surpresa e ainda fazer um lanche. Sentia fome, e um pouco de sede também. Foi ao computador ver se sua irmã estava on-line, o que era praticamente certeza, mas ele queria conferir, de vez em nunca a família saia para lanchar fora. A irmã não estava, será que tinham saído nesta noite, justo nesta noite em que o açúcar havia acabado. Sempre que podia conversava com sua irmã pela internet, até mesmo quando moravam na mesma casa, com a mãe não era muito diferente. Na verdade, não conversavam pela rede porque a mãe insistia em não utilizar este tipo de tecnologia, até tentara certa vez. As conversar eram quase que exclusivamente constituídas por uma ou duas palavras como: Almoço, Café. Bom dia. Se amavam profundamente, mas se acostumaram, e o costume passou a cotidiano e o cotidiano passou a ser a vida e a vida passou a ser distância.

Piscou os olhos.  Por hora, basta de lembranças, era preciso fazer algo e rápido, bem rápido, pedir uma pizza, entrega em dez minutos ou não precisa pagar, pizza grande vinha com refrigerante de graça. Sabia que não era o mais certo a fazer, comer besteira no meio da semana, teria que jogar fora uma semana de trabalho duro na academia. Mas este era um caso de emergência, então na manhã seguinte quando fosse trabalhar, depois de passar na academia poderia sim, com certeza, comprar açúcar no mercado e então tudo voltaria ao normal, pedir pizza era a melhor coisa a se fazer.  Era acostumado a comer pizza só em comemorações ou finais de semana, mas sempre acompanhado, valorizava nestes momentos o real sentido da palavra comer, ou seja, aquele etimológico que significa muito mais companhia do que comer propriamente dito. Mas esse leve incômodo não o iria impedir de forma alguma de pedir uma pizza, precisaria de um motivo mais forte.

Por mais que ligasse para a pizzaria ninguém atendia, há mais de dez minutos que tentava sem sucesso, não iria de forma alguma ligar para outra pizzaria, era fiel, não só por isso, o principal motivo era o sabor, não gostava muito das outras. Estaria disposto a fazer uma renúncia e pedir uma daquelas pizzas mais ou menos, que tinham a probabilidade de três para um de estar um pouco queimada e de dois para um de estar fria quando chegar! Pensou bem, colocou na balança, estava com fome, mas não era possível.  O jeito mesmo era fazer chá, daqueles de saquinho, comprara na esperança de que quando a sua mãe fosse visitá-lo qualquer dia poderia ter algo adequado para servir, uma vez que não ofereceria a sua própria mãe licor de jabuticaba ou whisky doze anos, ao pai sim, provavelmente o faria, mas não a mãe. Isto era certo.

Mais uma vez abriu a porta do armário e pegou a única caixa de chá, sabor de erva-doce, sabor favorito da mãe, colocou um pouco mais de água na chaleira e pôs para ferver. Colocou um saquinho na caneca do Corinthians que ganhara do seu pai no último dia dos pais, como se quisesse dizer: É filhão, está na hora de parar de só dar presente nesta data e começar a ganhar.  Não disse, mas disse não dizendo, disse olhando, disse presenteando, Rafael bem sabia, era o mais velho, seria natural que o velho, como chamara ao seu pai, estivesse ansioso por ter netos, e sua irmã ainda era nova de mais para ter filhos. Rafael bem poderia ter filhos, mas não tinha planos por agora, pretendentes para mãe não lhe faltavam. Sentia falta de uma companheira neste momento. Mas amanhã de manhã depois da academia ele compraria açúcar e tudo estaria resolvido. Não sentiria mais falta de ninguém.

A água enfim estava fervida, desligou o fogo e pôs na caneca do Corinthians. Enquanto esperava esfriar esquentou um misto quente no microondas. Não seria a melhor refeição, mas seria uma refeição, era consolador. O misto estava do jeito que gostava, as primeiras mordidas tiveram um que de muito prazeroso, sem pensar assoprou o chá a fim de resfriá-lo um pouco mais, pois ainda estava quente ao tato, e bebeu um gole. Não se lembrava de que chá era tão ruim assim. Havia muito tempo que não tomava chá, era um fato, mas não se esquecera de todo do gosto, se lembrava um pouco que era ruim, mas nem tanto, não era possível que ele não sabia fazer um chá, que segredo teria? Fez um forte esforço e engoliu tudo em um gole só, também não era para menos, já que a sua boca já estava começando a queimar. Se intrigou, pegou a  caixa de chá, agora aberta, e buscou o manual de preparo, então consegui entender tudo, era simples, precisava de açúcar. Sentiu como nunca a falta de uma mulher, de sua mãe, de uma namorada mais presente, de uma esposa, alguém que pudesse cuidar da casa, e ver que o açúcar estava acabando e era preciso comprar mais.  Era simples, mas era coisa de mulher. Seu pai o entenderia.

E agora, o que fazer, comer o misto com água? Mas porque a porcaria do chá não vinha adocicado – se questionava Rafael – era simples, o achocolatado já vem adoçado porque então o chá não vem! Era simples, ele mesmo conseguiu chegar a uma resposta satisfatória. O público alvo era totalmente distintos, jovens tomam chocolate, senhoras tomam chá, senhoras light, senhoras que fazem dieta e caminhada. Seria de mais exigir que a indústria de chá adocicasse o produto, seria o fim dos chás.  E o chá era um produto tradicional, com um papel importante na sociedade, não só na inglesa, mas na sociedade de senhoras maduras também.

Tentando ser racional Rafael buscou novos horizontes para o seu problema, um passo era uma investigação fácil. O que se usava antes do açúcar. Elementar, essa era tranqüila, rapadura, mas ele não tinha rapadura, nem precisava procurar, tinha certeza. Segundo passo: o que se fazia quando acabava o açúcar, ou a rapadura. Nesta hora o inconsciente irônico e bastante satírico disse rispidamente: Vai ao mercado. Pensando bem se ele fosse ao mercado quando tinha descoberto o vazio no pote de açúcar, bem provavelmente já estaria de volta. Agora não iria mesmo, eram quase onze. Estava com rapadura na cabeça, sociedades antigas. Foi quando teve uma idéia, não uma grande idéia, mas uma idéia de toda forma.  Não se lembrava de onde tirara, se de uma história de sua mãe, se de algum relato de sociedades antigas, ou se de um filme de época, mas de fato, parecia que antigamente quando se acabava o açúcar as pessoas pediam emprestado. Estranho não, era constrangedor, Rafael percebeu logo que não era uma boa idéia. Fora criado assim, sem pedir nada emprestado, a sua mãe lhe proibia, e quando teimava, sempre dava alguma coisa errada, como da vez que pegou um cartucho de super nitendo emprestado com  um coleguinha de escola, nossa isso fazia muito tempo, quando devolvera ela não funcionava mais, tinha certeza que tivera cuidado e que a culpa não era sua, mas tivera que pagar.

Pedir emprestado realmente não era uma boa idéia, depois de adulto pedia muitas coisas emprestadas, e emprestava outras coisas, mas comida, se é que se pode chamar açúcar de comida, não era de todo confortável, e ficar com fome parecia uma idéia pior ainda. Se fosse pedir açúcar seria para alguém que tivesse intimidade, mas quem? Conversara com o síndico em duas reuniões de condomínio, até mesmo fora relator na última porque a filha do secretário estava se casando naquele horário.  Tinha a vizinha do apartamento da frente que sempre pegava o elevado com ele, trocavam bons dias e sorrisos, ao menos quando ela não estava naqueles dias. Fazia algum tempo que não a via, será que ela ainda morava lá?  Provavelmente sim.  Qual era mesmo o nome dela? Rafael não se lembrava, e nem tinha como, pois ela nunca havia dito o seu nome, nunca havia dito algo mais do que bons dias e ois.  Também já estava tarde para bater na campanhia alheia e pedir açúcar. Entretanto seria, de fato, inconveniente bater na campanhia de alguém a tal hora da noite.

A vida era mais doce quando se tinha açúcar!  Já amargurado e amargo pegou o pote tão, tão, vazio e decidiu-se ir. Para onde? Não sabia, mas era preciso ir e encher o pote de açúcar, passou pela cristaleira antiga, talvez fosse preciso enchê-la também, ou quem sabe substituí-la por algo mais moderno e funcional. Com o pote embaixo do braço, cruzou o limite de seu recinto de intimidade e cruzou para o limiar do domínio público mais conhecido como corredor do décimo andar.  Do elevador saiu dois homens que Rafael nunca vira antes, um mais jovem, mais ou menos adulto e outro mais velho, provavelmente pai do mais jovem. O mais velho passou por Rafael abaixando a cabeça como forma de comprimento, o mais novo simplesmente passou, Rafael, por sua vez, abaixou a cabeça ao se dar conta que estava segurando um pote de açúcar vazio.  Com a chave o mais novo abriu a porta do apartamento da vizinha, que Rafael não sabia o nome, mas que por algum motivo agora achava ser Daniela. Pegou o elevador, olhou o painel cheio de números, subir ou descer, decidiu subir. Destino: décimo primeiro.

No espaço relativamente curto de tempo que se passou desde que no décimo andar apertara o botão do décimo primeiro até o momento em que as portas do elevado se abriram já neste último andar percebera o quão vago era. E não sabia bem. No corredor atravessou os primeiros obstáculos da sua comodidade e foi adiante, voltou ao ponto do qual partira, enfiou a chave na porta de um dos apartamentos e abriu a porta.

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