O assunto é clichê? Sem dúvida. No entanto, como não retomá-lo quando o prêmio Nobel da Literatura é concedido a um cantor e compositor. Ora, praticamente impossível. 1. Seja pelo prestígio do prêmio. 2. Seja pela importância midiática. Mas afinal, canção é literatura?
A primeira coisa que vi particularmente foi uma legenda no jornal, até então tudo bem, pensei: “O Bob escreve também? Pode ser… por que não? Hoje em dia, muitos compositores se lançam na literatura…”. A minha expectativa pelo inusitado possível livro foi logo quebrada, antes mesmo de me perguntar se o Dylan escreveria poesia ou prosa. Expectativa quebrada pela seguinte frase: “‘Criou nova expressão poética na canção americana’, dizem organizadores.”. Ou seja, Dylan recebeu o Prêmio Nobel (de literatura, diga-se de passagem) por sua expressão poética na canção.
Dito que a expressão poética na canção é o motivo da premiação, podemos pensar, ou sonhar, depende do seu ponto de vista teórico, com Chico Buarque recebendo prêmios de literatura por seu trabalho musical. Sabemos que trabalhos acadêmicos não faltam sobre o Chico compositor. Se eu puxar a sardinha para o meu gosto, diria ainda que caberia um prêmio in memoriam para o Renato Russo, não o Nobel, mas quem sabe um jabuti? Pela força poética, justifico-me: “És parte ainda do que me faz forte” ou ainda “Quando se aprende amar o mundo passa a ser seu”. Sem falar nas riquezas de figuras de linguagem: “Acho que o imperfeito não participa do passado.”. “Não estatize meus sentimentos/ pra seu governo/O meu estado é independente”. “Fiz carvão do baton que roubei de você/ E com ele marquei dois pontos de fuga / E rabisquei meu horizonte”. Obviamente não poderia ser diferente, morei quase a vida inteira em Brasília, e amo rock. Logo reconheço a riqueza da obra de Dylan, no entanto será esta riqueza literária?
No ensino médio um professor de química me ensinou algo importante: “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa totalmente diferente” Aqui deixo claro meu posicionamento, canção é canção, literatura é outra coisa, uma arte diferente, não totalmente, mas em todo caso diferente. Pedagogicamente falando, pensemos em uma vitamina de banana, ela não é leite nem banana. Tão pouco é possível dissociar o leite da banana uma vez que batidos no liquidificador, pois ambos formam um novo elemento, um elemento orgânico e complexo em si.
Primeiramente é difícil estabelecer na literatura contemporânea elementos de poeticidade. Na poesia clássica temos elementos de fácil identificação, que todos conhecemos de cor. São eles: verso, rima, métrica, mas como bem sabemos o netinho jogou os óculos na latrina. Mesmo que alguns poetas como Manuel Bandeira conseguiram construir poemas com um ritmo por vezes bem definidos, a tendência do modernismo para cá, é de elementos clássicos ausentes e cada vez menos marcados. De toda forma, não podemos falar desses elementos clássicos como condição sine qua non da poeticidade de uma obra.
Por outro lado, analisemos a canção. Basicamente a cançaõ depende de dois elementos para existir: letra e melodia. Não nos cabe analisar a melodia. Resta-nos a letra. A letra em vários autores do cancioneiro brasileiro, bem como de outros países, (O Dylan nos Estados Unidos, por exemplo) se destacam, justamente pela poeticidade de suas obras. Penso em Noel Rosa, e tantos outros. Mas ao compor uma canção, letra e melodia fazem uma unidade, uma só carne, a letra é vazia sem a melodia, e a melodia vazia sem a letra. E aqui potencialmente se cria um problema. E um poema musicado? Literatura ou canção? Cito três exemplos. Fagner musicalizou Fanatismo, um fabuloso soneto de Florbela Espanca. Sem melodia temos um soneto, poema, literatura, clássico, indiscutível. Entretanto com melodia, temos uma nova forma. Neste caso, em alguns momentos a melodia proposta por Fagner ganha tal importância que não fazemos mais atenção à própria marcação rítmica do poema. As rimas dão espaço a um canto que como critico literário não tenho competência para analisar por ser justamente crítico literário e não crítico de música. O Evidente é que ajuntando àquele poema de outrora uma melodia e um canto, eis que o “poema” não é mais um soneto, é uma canção, uma outra obra. Fagner faz o mesmo em Traduzir-se de Ferreira Gullar. Nesse caso a metalinguagem ganha novas proporções, que poderiam ser exaustivamente debatidas, agora deixo apenas o seguinte questionamento: traduzir uma parte outra parte (que é questão de vida e morte) em será arte?
A poesia de Gullar é mais moderna que a de Florbela, os elementos clássicos menos marcados, e menos ainda no terceiro exemplo. O poema Travessia do Eixão do Poeta Nicolas Behr foi musicalizado pela Legião Urbana. Na canção da Legião elementos musicais são introduzidos fazendo que o poema ganhe uma característica quase folclórica. O coral, o ambiente musical por assim dizer, quase faz esquecer a poeticidade do texto original. Obviamente minha pretensão não é analisar minunciosamente cada obra, mas constatar uma diferença imanente, semântica e ontológica entre canção e literatura. Fique claro que não conheço a fundo a obra de Dylan, a analise não é se a obra de Dylan tem ou não qualidade poética, mas se ela é ou não poética.
Alguns intelectuais veem como sinal de uma decadência da qualidade do ensino superior quando alunos de letras dedicam-se mais às analises de letras de canção em detrimento da literatura. O debate, e o Prêmio Nobel me faz chegar ao seguinte raciocínio. 1. A literatura está decadente e no momento não há ninguém que produza uma literatura de qualidade suficiente para receber o Nobel, seja por uma obra, ou pelo conjunto de obras. 2. O Próprio conceito de literatura está turvo, ao ponto de claramente não se saber o que é a literatura.
No entanto, não quero generalizar. Por isso gostaria de evidenciar algumas ressalvas. Sobre o ponto 1. Pode haver literatura de qualidade sendo feita, talvez o problema seja no reconhecimento e na difusão, entretanto o prêmio concedido a um cantor e não a um escritor coloca os escritores em posição de cheque. O que não deixa de ser, em um ponto de vista sinal de decadência.
Sobre o ponto dois: Devido às rupturas com a literatura clássica uma nova literatura emerge, com novas possibilidades do fazer literário que em séculos anteriores não seriam possível. As artes se interligam e dialogam entre si, o cinema é o grande exemplo, nesse contexto pouco a pouco com a perda de uma visão clara de literatura, e também com uma crítica cada vez mais ampla e abstrata, seja na forma, mas também na estruturação teórica da própria crítica, o senso da literatura paulatinamente se tornou turvo até enfim se perder. Se perder ao ponto ser considerada a melhor literatura o que não é literatura. Mesmo se encararmos o prêmio como constatação de um avanço ou inovação na área, não seria aplicável uma vez que a aplicação não concerne com o domínio de conhecimento em questão. Ainda que eu acredite que a noção de literatura está realmente se diluindo posso estar errado, e ser somente a academia sueca a não saber direito o que é literatura.
É conhecida a anedota de que certo homem ao encontra-se com Mallarmé lhe teria dito:
– Te admiro muito, pois tenho muitas ideias para fazer poemas, mas não consigo escrevê-los. Mallarmé teria respondido: Porém não é de se admirar, meu caro, poemas não são feito com ideias, mas com palavras. E se Drummond estivesse nessa conversação diria: – Com uma ressalva, poemas são desafiando as palavras.
Nessa luta, não gostaria de adicionar outros elementos tais quais, melodia, tom, canto, compasso e companhia. Não cabe julgar quem está certo, mas lendo Os Miseráveis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Crime e Castigo, os Sonetos de Camões (merecem um S maiúsculo) ou os poemas de Manuel Bandeira, sei que são literatura. Quanto ao Dylan já não posso dizer o mesmo. E Digo isso sem nenhuma pretensão de estigmatizar a obra do Bob, mas ao contrário de merecer o legado dele pelo que de fato é, canção. Se ele criou nova expressão poética na canção americana, inventemos um Nobel da canção. Seria mais justo para o compositor enquanto compositor, e mais respeitoso aos escritores enquanto escritores.